free-lance para a Folha
A maioria dos adolescentes é vítima hoje da chamada privação crônica do sono, relacionada a comportamentos que vão de irritação e baixo rendimento escolar a busca, durante o dia, por estimulantes, como nicotina, ou, durante a noite, por relaxantes, como álcool. A maior e mais completa pesquisa sobre o padrão de sono na adolescência, feita pela Fundação Nacional do Sono dos EUA, constatou que apenas 15% dos jovens de 13 a 18 anos dormem o número mínimo de horas necessárias: oito horas e meia nos dias letivos.
No Brasil, dizem os especialistas, a situação é semelhante. E mais: a privação crônica de sono dos adolescentes está se tornando um problema de saúde pública por causa dos efeitos fisiológicos, psicossociais e psiquiátricos, diz Geraldo Rizzo, presidente da Sociedade Brasileira de Neurofisiologia Clínica.
O problema também afeta as crianças, mas o quadro se agrava na puberdade, com a entrada da chamada pressão social: computador, baladas, telefone e os novos relacionamentos afetivos, entre outros.
O ritmo biológico de dormir e acordar é uma adaptação do organismo ao fenômeno físico mais previsível que existe, o ciclo dia-noite. Esse ritmo é acompanhado por alterações fisiológicas, entre as quais os picos hormonais e a variação da temperatura interna do corpo. Antes do amanhecer, por exemplo, há um aumento da secreção do hormônio cortisol, que prepara o organismo para a atividade. Ao escurecer, aumenta a secreção de melatonina, que prepara para o sono. Quando a pessoa acorda, a temperatura interna do corpo começa a subir e atinge o valor máximo no final da tarde. Depois, começa a cair e chega ao valor mínimo no meio da noite.
Na puberdade, esse mecanismo sofre um atraso, o que faz do adolescente um ser biologicamente programado para dormir e acordar mais tarde. Na maior parte da manhã, seu cérebro não está em estado de vigília. Mesmo os jovens que dormem o suficiente (em média, nove horas por noite) tendem a ficar sonolentos até o meio da manhã e absolutamente alertas a partir do meio da tarde.
O estudante André Funaro Mortara, 16, por exemplo, apesar de dormir de sete e meia a oito horas, o que não é uma média ideal, mas superior a da maioria dos seus colegas, passa a primeira aula meio "sonado". Se vai dormir mais tarde, sente o baque: dores no corpo, incapacidade de se concentrar e falta de vontade de conversar com qualquer um. "Até para falar do jogo do Palmeiras." Mortara, que dorme às 23h e acorda às 6h30, pode estar perdendo cerca de uma hora e meia de sono por dia, o que, de segunda a sexta, dá quase uma noite inteira a menos de sono. "Eu nunca tinha me dado conta disso, de que sabemos tão pouco sobre as necessidades de sono", diz sua mãe, Mônica Funaro Mortara, 43.
Desconhecimento é geral
Pesquisa de março passado, feita pela Fundação Nacional do Sono dos EUA, mostra que mais de 50% dos pais não sabem quais são as necessidades de sono de seus filhos e também não conversam sobre isso com o médico. Para o neurofisiologista Flávio Alóe, do Centro de Sono do HC, mesmo pediatras ou hebiatras conhecem pouco o assunto e muitos pacientes rodam de médico em médico até chegar a um diagnóstico de sono para os seus problemas.
A divulgação das descobertas no campo do sono é mesmo muito recente. Até os anos 90, fora do meio acadêmico, não se falava desse atraso fisiológico do sono do adolescente. Assim, para a maioria das pessoas, o horário de dormir não passava de uma questão educativa, de impor limites.
Para Luis Menna-Barreto, do Grupo Multidisciplinar de Desenvolvimento e Ritmos Biológicos da Universidade de São Paulo, o principal "ladrão de sono" do adolescente é o horário da escola, que começa cada vez mais cedo a partir da segunda fase do ensino fundamental (de 5ª a 8ª séries), o que vai na contramão do atraso fisiológico do sono. Atrasar o início do horário das aulas parece ser uma boa medida. No Estado de Minnesota (EUA), algumas escolas adotaram novos horários, e o desempenho dos alunos tem sido superior ao dos que entram mais cedo. Fica aí a dica para quem tiver a opção de estudar no período da tarde, desde que o aluno não troque a noite pela manhã na cama.
Noel Martins, 20, teve vários problemas na escola durante o ensino médio, assistindo às aulas semi-adormecido --quando não dormia de fato na sala de aula. Mas seu rendimento intelectual mudou quando passou a estudar à noite, no cursinho. Hoje faz faculdade à tarde e acorda entre 9h30 e 10h nos dias de semana. Nos finais de semana, aproveita: "Outro dia, dormi 16 horas seguidas", conta.
Tirar o atraso no fim de semana, para muitos especialistas, é um mal necessário, porque permite ao adolescente que recupere, ainda que parcialmente, o sono perdido. Menna-Barreto desaconselha a prática, afirmando que ela produz um quadro de desorganização dos ritmos biológicos. "Chamamos esse fenômeno de dessincronização interna. É caracterizado pela perda das relações temporais entre os ritmos dos hormônios, da temperatura, do sono etc. Associa-se à fadiga, à alteração de humor e à dificuldade de concentração, por exemplo."
Mas existem estratégias para aumentar a quantidade e a qualidade do sono do adolescente. Por exemplo: o escuro aumenta a produção de melatonina, hormônio que tem influência sobre o início do sono. Por isso afastar-se de telas luminosas pelo menos uma hora antes de ir para a cama surte um efeito "sonífero".
A fonoaudióloga Marcia Beer não esperava que simples mudanças de hábito pudessem surtir resultados tão efetivos no sono da filha, Glória Beer, de 16 anos. A estudante sempre teve dificuldade para pegar no sono, mas, quando ingressou no ensino médio, a situação ficou crítica. Tinha de acordar às 5h15, mas só adormecia depois das 2h. "Eu não conseguia me concentrar, brigava com todo mundo. Ficava desesperada, principalmente em época de prova. Como não prestava atenção na aula, precisava estudar à noite e aí dormia menos ainda."
Mãe e filha procuraram ajuda no Instituto do Sono, onde receberam orientações básicas, muito simples, como praticar exercício físico três vezes por semana, mas só até as 16h30, e completar um diário do sono. Em 15 dias, os horários de dormir já estavam praticamente regularizados. "Fiquei pasma. Achava que o problema só seria resolvido com medicamentos", diz a mãe.
Mas consumir remédio para dormir não é o caso, porque o atraso faz parte da fisiologia do adolescente. E o melhor: acaba na vida adulta. Quando isso não acontece, aí sim pode ser doença --o chamado distúrbio de atraso da fase de sono. Algumas das características do distúrbio são uma inflexibilidade muito grande para adiantar o sono e para despertar mais cedo e a tendência para acordar cada vez mais tarde, trocando o dia pela noite. Nesse caso, são indicados tratamento específico e medicamentos, como melatonina sintética, diz Alóe, do Centro de Sono do HC.
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